Rioiti Uchida

De Nikkeypedia

Rioiti Uchida conheceu o Judô ainda muito garoto, em Tapiraí, município ao sudeste do Estado de São Paulo, onde nasceu e já criança trabalhava nas lavouras de cha. “Tínhamos uma casa na vila, mas íamos para a roça durante a semana e lá dormíamos em alojamentos. Só ficávamos em casa nos fins de semana. Eu não treinava judô, mas meus irmãos mais velhos, sim. Como a academia ficava no centro da cidade e nós trabalhávamos e morávamos na zona rural, era complicado ir para a academia. Eles eram mais velhos e podiam se virar sozinhos, de bicicleta. Eu só ia para vê-los treinar e isso quando podiam me levar. Assim comecei a gostar do judô.”

Mas Uchida não tardaria a gostar do judô na prática, o que, contudo, não se daria sem antes muito sacrifício, como quase tudo em sua vida. “Eu acredito que quanto mais dificuldade se vive, melhor é, porque você se fortalece interiormente.” Aos quatorze anos veio para São Paulo para trabalhar no Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo), no empreendimento de um primo. “Não sabia o que queria nem o que encontraria em São Paulo, mas achava que não podia ser menos do que tinha em Tapiraí. Por isso vim.” A rotina de trabalho de Uchida era dura, começava às oito horas da noite e terminava às oito horas da manhã, todos os dias.

A vida do futuro professor de judô seguia seu curso no popular comércio do Ceagesp sem que sentisse que fosse o rumo adequado ao seu temperamento, à sua visão de mundo que, embora ainda em formação, já tinha suas bases consolidadas. Sua perspectiva começaria a mudar quando aos dezenove anos reencontrou o judô, dessa vez não apenas como expectador, mas como praticante. A partir de então, terminado o expediente, às oito da manhã, Uchida seguia para a academia de Chiaki Ishii na Rua Barão de Jundiaí, no bairro da Lapa. Não chegava cansado? “A gente já tinha se acostumado.”


Conteúdo

O Suave Caminhar de um Professor

São quase quarenta anos dedicados ao judô, mas Uchida faz questão de dizer: “Não gosto de olhar para o passado; não lamento nem cultivo saudades”. Para Rioiti Uchida sensei, professor da academia Judô Alto da Lapa, apegar-se ao passado é desviar-se do presente e do futuro, prender-se a glórias ou fracassos que em vez de estimulá-lo pode agrilhoar seus passos. Talvez por isso, esse descendente de nipônicos, de pele mais acobreada do que alva, de riso fácil e semblante simpático, respeitável sem ser sisudez, tenha sido Quinze vezes campeão mundial de kata (apresentação detalhada de movimentos de golpes) ao lado de seu parceiro, Luis Alberto dos Santos, com quem também ganhou quinze competições de kata disputadas em cinco pan-americanos.

“Claro que todo professor quer que seus alunos vençam campeonatos. Eu não sou diferente. Mas tenho consciência de que há vitórias maiores do que campeonatos. Cada pessoa tem seus próprios limites, e minha função, como professor, é auxiliá-las a superá-los. Superar o próprio limite é a maior vitória que se pode alcançar, e a função do professor não é outra se não dar ferramentas ao aluno para que ele consiga.” Para Uchida, um grande competidor que não respeita esse princípio será apenas um grande competidor, mas não um grande judoca, não um judoca de verdade.

Sensei Uchida fala com propriedade, não só porque conquistou tudo o que conquistou, mas porque nasceu para o caminho suave (tradução de judô) pelas mãos de um dos maiores competidores brasileiros da história do esporte: Chiaki Ishii, o primeiro medalhista olímpico do País. “O judô competitivo serve essencialmente para divulgar o esporte e a filosofia que há por trás dele. Acho que os grandes campeões têm com a arte marcial uma responsabilidade ainda maior.” Uchida quer dizer que um campeão não pode se assoberbar, não pode achar que vencer os rivais seja o maior mérito no esporte. “Quem ganha e quem perde têm a mesma importância. Se não houver quem caia, não haverá quem derrube.”

Como competidor de shiai (luta), Uchida participou de torneios regionais e nacionais, como o metropolitano, o paulistano (do qual foi campeão), o paulista e o beneméritos (brasileiro por equipe), obtendo classificações importantes em todos. “Sensei Uchida, sempre demonstrou alta qualidade técnica nos treinos e competições, obtendo classificações em algumas das principais competições do Brasil”, afirma Rodrigo Motta, faixa-preta godan (quinto grau) e um dos mais antigos alunos de Uchida. E, ainda segundo Motta, poderia ter obtido muitas outras se não tivesse priorizado a carreira de professor, se não tivesse optado por ser o braço direito de Ishii, ministrando aulas na legendária Associação de Judô Ishii.

O Professor

A escola de judô em que se formou Uchida não podia ser melhor. Ishii é um dos maiores judocas da história do País. Na época, possivelmente era o mais famoso. “Ao longo de todos estes anos, jamais conheci alguém que soubesse tanto da técnica do judô como Ishii. Num randori (treino de luta), num shiai (luta), enfim, em qualquer situação dentro do tatami, ele não dava um passo sem razão, sem o propósito de se preparar para um segundo movimento mais efetivo, para um golpe incisivo.” Sensei Uchida conciliou por um bom tempo o trabalho no Ceagesp e o judô, até que, em 1977, quando já era faixa-preta e nidan (segundo grau), foi convidado pelo professor Ishii a auxiliá-lo com as aulas na academia da Avenida Pompeia, recém-aberta.

“Ganharia bem menos do que no Ceagesp, moraria na própria academia, cuidaria da limpeza e organização dela e, nos fins de semana, lavaria quimonos e prestaria assistência a judocas que vinham de todo o Brasil e até de outros países para aprender um pouco da técnica do sensei.”

A rotina era intensa. “Treinávamos todos os dias da semana, de manhã, de tarde e de noite. Aos sábados, uma vez, à tarde; o treino da Federação Paulista de Judô FPJ.” Arrependia-se da escolha? “Jamais. Quando me foi feita a oferta por Ishii, não titubeei. O Ceagesp era bom para quem queria ganhar dinheiro, mas o convívio não era saudável. Não me identificava com ninguém. Não encontrava exemplos a seguir. No judô, eu vi um caminho, vi um outro tipo de riqueza.”

Uchida morou seis anos na academia de Ishii. Em 1983, ele se casou com Yischie Yamaguti, também conhecida como Tereza, que passaria, a partir dali, a ter também o sobrenome do marido. Uchida continuou a dar aulas na academia do professor e foi assim até o início da década de 1990. “Ao longo desse período, percebi que a faixa etária dos alunos da academia havia mudado bastante. Quando comecei a trabalhar com o sensei, quase não havia crianças. No fim, havia mais crianças do que adultos.”

Alto da Lapa

Depois de mais de uma década auxiliandoo professor Chiaki Ishii, Rioiti Uchida se viu obrigado a separar-se do professor. “Ishii tinha três academias, mas precisou fechar duas e minha presença deixou de ser imprescindível. Nessa época, reencontrei o sensei Pepe (José Fernandez Diaz), a quem já conhecia. Sua academia estava parada. Então, me convidou para ser o professor e, juntos, fundamos a Associação Judô Alta da Lapa.” Antes de receber o convite de Pepe, Uchida pela primeira e única vez temeu ter de ganhar a vida de outra maneira que não fosse pelo judô. A proposta de Pepe o manteve no caminho que escolhera. Àquela altura, o professor já tinha dois filhos, Wagner Tadashi Uchida e Roger Tsuyoshi Uchida, e seu casamento com Tereza, mais de dez anos. Hoje, o casamento tem 26 anos; os meninos de então são adultos faixas pretas e treinam com o pai.

As atividades na nova academia começaram em novembro de 1994, e muitos de seus alunos da academia de Ishii acompanharam, e ainda o acompanham, na nova empreitada. As palavras de Uchida não dão margem para duvidar do apreço que tem pelo judô e pelos valores cultivados. O orgulho com que fala dos alunos que o acompanharam no novo desafio e de como aumentou o número de crianças na academia de seu professor depois que passou a ensinar a arte marcial não deixa dúvidas de que essas são as suas maiores riquezas.

“O judô é uma fonte de conhecimento sem fim e não faço questão de deixar aos meus filhos bens materiais, mas conhecimento. Dinheiro é importante, mas não é o principal. Quando comecei no judô, o que mais me atraía era a técnica, mas descobri que ele era muito mais do que isso, descobri que era, sobretudo, conhecimento humano. Apesar de ser conhecimento, tenho certeza que livro algum é capaz de ensinar alguém a ser judoca. O judô é totalmente prática, é disciplina, gratidão, respeito à hierarquia, entrega e companheirismo.” Com um leve sorriso no rosto, Uchida reconhece que não percebeu tudo isso desde que começou a praticar o esporte. “O judô está sempre me revelando algo novo. Ele, assim como o conhecimento, é infinito.”

Para exemplificar a ideia de que o esporte é uma fonte de conhecimento para a vida, Uchida cita algumas nomenclaturas. “Por exemplo, senpai (cuja tradução básica seria ‘mais graduado’) para mim é mais do que ‘mais graduado’, é aquele que ensina ou ensinou, pois mais do que apenas companheiro de treino do kohai (‘menos graduado’), ele também o ensina. Por isso, mesmo que eu supere em graduação alguém que me ensinou, ele continuará a ser meu senpai e terei por ele uma admiração de aprendiz. Sabe o que significa sensei? Significa: aquele que nasceu primeiro. Não para a vida. No caso do judô, aquele que nasceu primeiro para a arte marcial. Isso significa que, mesmo que supere em graduação meu sensei, ele continuará a ser meu sensei. Sem ele, eu jamais seria o que me tornei. Eu jamais serei mais que meu professor.”

Na opinião de Uchida, esse conceito extrapolado para a relação filial e para as amizades as faria mais saudáveis. “Não quero dizer que você é obrigado a concordar com tudo, que não pode discordar. Mas se o fizer, seja sempre respeitoso. Dessa maneira, o entendimento, não a concordância, será atingido mais facilmente.” Essa é uma das lições que Uchida busca transmitir com as aulas que ministra na academia Judô Alto da Lapa.

Kata

Para Uchida, Jigoro Kano (fundador do caminho suave) foi um visionário, pois concebeu uma arte marcial flexível e ao mesmo tempo com raízes fortes. Não por acaso, escolheu a flor do sakura (cerejeira) como símbolo do esporte. A cerejeira é adorada pelos japoneses por resistir aos invernos mais rigorosos, sem que seus galhos se quebrem, o que só possível graças à flexibilidade que os caracterizam. Sob a pressão do acúmulo dos flocos de neve, eles vergam, mas não quebram. Ao mesmo tempo, têm raízes fortes, que lhe garantem longa vida. A soma desses atributos aparentemente paradoxais desabrocha em flores rosadas ou brancas que impressionam de perto ou de longe. A florada do sakura é um espetáculo tão admirável quanto a história do judô.

“O judô se transforma, conforme os anos passam, mas mantém sua raiz filosófica e, por meio do kata, mantém sua raiz técnica. O kata é o judô como Jigoro Kano o concebeu; é a forma original: a fonte.” O amor de Uchida pelo kata surgiu no início da década de 1980, quando fez o primeiro curso de kata de sua vida. O primeiro contato se dera muito antes, quando Ishii o ensinara o nague no kata para fazer o exame para faixa-preta (o nague no kata é obrigatório para o exame). “Depois que fiz o primeiro curso de kata, queria aprender os sete, mas não havia quase informação a respeito. O que hoje sobra, há alguns anos quase não existia. Foi por meio do sensei Massao Shinohara e de Mário Matsuda que aprendemos muito mais do que precisávamos para nos arriscarmos em um mundial de kata; os resultados são a prova disso.”

O percurso para que Uchida chegasse ao mundial foi mais longo do que se pode supor por este texto. Do primeiro curso de kata (1983) até o primeiro mundial, realizado em 2001 nos Estados Unidos (EUA), em Phoenix, houve um intervalo de dezoito anos. “No mesmo ano em que disputaria o mundial, ainda tive de mudar de parceiro. Claudionor Vieira de Moraes, que fora meu parceiro por muitos anos, tinha dificuldades em conciliar o trabalho com os treinos e, juntos, concluímos que era melhor desfazermos a dupla. Foi então que comecei a treinar com Luiz Alberto.”

A nova dupla não demorou a entrosar-se. O sucesso veio logo na primeira empreitada, em Phoenix: duas medalhas de ouro, uma de prata e uma de bronze, nos quatro katas que apresentaram. Era apenas o começo. Pelo suave caminho do judô, disputando pan-americanos e mundiais de kata, o menino de Tapiraí conheceria boa parte do mundo: Irlanda do Norte, Argentina, Canadá, Áustria, França e Japão, para citar alguns. “No Japão, a experiência foi única. Disputar uma competição dentro do Kodokan, o berço do judô, vencê-la e ser eleito, ao lado companheiro, os Grand Champions (no caso, os melhores) do torneio, é um sonho para qualquer judoca.”

É interessante observar que o sensei faz questão de sempre falar na primeira pessoa do plural quando trata do kata. “Esse é outro ponto importante e que, a meu ver, enriquece ainda mais o kata. Em vez de um adversário, você tem um aliado. Em vez de submeter, você precisa conciliar. No kata, você é dois no tatami. O seu melhor só será válido se for também o melhor para o seu companheiro. Se eu for mal, prejudicarei o trabalho do Luiz e vice-versa.”

Para o sensei, o kata encerra a essência cooperativa do judô, resumida no termo cunhado por Jigoro Kano e um dos alicerces da filosofia do esporte: “prosperidade mútua”. O fato é que sem internalizar esse princípio, Uchida não conquistaria tudo o que conquistou. E, como se vê, tais conquistas não se limitam às que podem ser penduradas no pescoço ou erguidas sobre a cabeça.


Vídeos


Links Externos